sexta-feira, 3 de março de 2017

Revitalizando a escrita à mão

Pois é, cadernetas de viagem, cadernos de receita e agendas de papel ainda são formas de mantermos viva a escrita à mão, em tempos de smartphone, magia contemporânea em que cabe o mundo. Interessante é que, nesses três elementos, os registros são muito singulares, e expressam a identidade de quem escreve tanto pelo conteúdo quanto pela caligrafia.

Anotações viajeiras, como abordei ontem, receitas culinárias do caderno com manchas de farinha e de gordura, agenda com rabiscos e rasuras, palavras apressadas, notas dos compromissos e demandas do dia, da semana, do mês, do ano: todas são possibilidades de expressão de aspectos individuais, e para fixá-los escolhemos nossa letra.

Eu poderia citar, sem dúvidas, outros recursos, hoje quase antiquados: as cartas, os cartões em datas comemorativas, as agendas de telefones e endereços, os antigos diários, ou até mesmo aquelas agendas da adolescência com colagens e descrição minuciosa de cada evento romântico. E uma das formas que permanece viva é aquela das anotações nas páginas de livros, hábito que identifica o leitor  em seu processo de interação com a obra. É possível compreender esses exemplos como uma espécie de preservação da  subjetividade em uma dada época da história pessoal, pois o tempo vivido fica cristalizado através do texto manuscrito. 
Estamos ali, na página: a nossa caligrafia nasce do nosso corpo. 


Assim, a escrita à mão é uma experiência de encontro com a própria letra, com os gestos e movimentos específicos de cada um. Sim, está quase fora de moda, mas tem havido, ultimamente, a tendência ao retorno dessa prática. Tenho lido e acompanhado materiais sobre os benefícios da escrita à mão, em bullet journals e na retomada de hábitos antigos, como a experiência do caderno de receitas. Foi com esse intuito que fiz do meu "Pequeno Alfarrábio de Acepipes e Doçuras" um livro caderno.  A partir da página 170, o leitor passa a ser autor de suas próprias receitas e histórias de cozinha, nas páginas pautadas do livro.
Além desse uso, as cadernetas e blocos de viagem estão cada vez mais na moda, para a escrita desavisada e sem ordem definida. O viajante escreve da forma como se locomove pelas cidades desconhecidas. Afinal, andar pelo branco da folha  com a própria letra é como  caminhar pelos lugares e perceber o estranhamento do novo através dos cinco sentidos. 

Você ainda escreve à mão?

Com carinho,
Betina

quinta-feira, 2 de março de 2017

Sempre levo um Moleskine

Começo a conversa contando que meu primeiro Moleskine não foi um Moleskine, porque na época em que comecei a registrar viagens ainda nem conhecia estas cadernetas. Fazendo hora no aeroporto Fiumicino, antes de voar para Pisa, tive ideia de buscar um diário, um caderno, ou um bloco qualquer de anotações. Eu sabia que era preciso um espaço de escrita à mão, que me acompanhasse na rua, nos cafés, nos momentos de silêncio ou naquelas simples notas que a gente faz, em pé no meio  da calçada, para não esquecer um local curioso.


E este foi o primeiro diário de viagem, comprado em 27 de maio de 2004, foto feita agora. Busquei na gaveta, onde fica guardado como recordação. Rastros mil dos percursos e medos, das comidas e dos horários de trem, dos livros e dos feitos de cada dia. Cronologia certinha, primeira quinzena registrada em detalhes. Depois, só passagens breves para lembrar de lugares ou de cenas locais.

Foi, então, na Itália que começou minha intimidade com essa forma de escrita, e nos primeiros dias conheci os verdadeiros Moleskines, aqueles inspirados nas cadernetas de mesmo nome, mas com inicial minúscula e genérica, que o inglês Bruce Chatwin usava em suas aventuras.  Era um verdadeiro mascote. De cara, tudo me encantou, mas por nenhum motivo em especial. Trata-se de um caderninho comum, preto, com elástico, folhas em tom creme, de um material oleoso, marcador em cetim. Capa dura, firme, com bordas arredondadas, que forma com esse elástico lateral uma espécie de amigo íntimo, confidente. Cabe no bolso dos casacos, nas bolsas menores, é leve e discreto. 

Dentro, na face interna da capa posterior, um bolso para os cartões, guardanapos com endereços de cafés, embrulhos de chocolate e bilhetes de ônibus ou de trem dobrados em mil. Este foi o primeiro de muitos, e as primeiras páginas ainda guardam observações da cidade, com rasuras pela correção da ortografia, glossários para aprender termos locais, horários de abertura e de fechamento dos negócios, nomes dos queijos e dos embutidos locais, livros para comprar na próxima ida à livraria que tinha um pátio com uma grande mesa e bancos, no jardim de inverno no fundo da loja, restaurantes graciosos onde voltar, e assim por diante. E, claro, confissões, surpresas e agonias que surgissem. Ainda não sabia usar direito (se é que esse 'direito' existe), e anotava de tudo, sem uma ordem de acontecimentos ou de percepções. Como diário, usava o Fabriano, que comprei no aeroporto, e ficava em casa para as notas da noite. A caderneta famosa, que eu nem sabia que tinha história, levava comigo. Até hoje, quando viajo, sempre levo um Moleskine. 


Sim, este objeto tem história. Dentro dele, vem um folheto explicativo, que li em casa, ao abrir o pacotinho da loja. Picasso, Hemingway e outros artistas também usaram o objeto, para escrever, pintar ou rabiscar. O tal Bruce Chatwin era um jornalista, escritor de viagens, e comprava centenas desses para cada percurso, a partir dos quais escrevia suas obras. Eram tão valiosos para ele que, na primeira página, colocava  seu nome, o valor de recompensa a ser paga a quem o encontrasse, caso fosse perdido. Numerava as páginas e tecia várias reflexões sobre cada detalhe. Eram feitos por uma fábrica familiar na cidade de Tours, na França, como simples cadernetas de viajantes. Conta-se que ele teria, certa vez, encontrado um bilhete na loja dizendo que os moleskines não seriam mais fabricados, e na ocasião teria comprado os últimos. Em homenagem ao escritor, uma pequena editora de  Milão, em 1997, passou a produzir as cadernetas com o nome antigo, nascendo os famosos Moleskines: estes têm, na primeira página, o espaço para o nome do proprietário, o traçado para o valor do reembolso em caso de perda, como registro do uso que Chatwin fazia nas suas próprias. Foi mantido o elástico e o bolso na face interna da última capa, o marcador em cetim e a capa tradicional, mas muitas outras cores, páginas internas, texturas e usos foram criados. 
Mais sobre a história da marca, Neste link


Dez anos e muitos Moleskines depois, escolhi para as aventuras na Província de Girona, na Catalunha, o Moleskine amarelo. Foi nele que registrei minhas notas sobre os sabores gironinos, a visita à Queijaria e Hospedaria Mas Alba, endereços, telefones e nomes de livros, ingredientes e produtos da região, lugares a conhecer. De vivências e percepções dos pratos à perplexidade frente aos cenários, tudo escrevi nas suas páginas de tom creme e linhas suaves. É nessa caderneta que registrei as memórias das primeiras pesquisas sobre o território de Girona. A cada texto que hoje escrevo sobre as comarcas e suas especialidades, volto a abrir o elástico que segura minhas lembranças bem guardadas, como se cada sensação habitasse o Moleskine. Como se, ao folhear, fosse possível sentir o cheiro dos queijos, dos vinhos, do pão, dos embutidos locais.
O  que sinto, passando por todos os caderninhos de viagem que tive desde 2004, é que as anotações são parecidas: sabores, aromas, cores, sons, texturas dos pratos e dos cenários que visito. Produtos feitos no local, vendidos nas feiras e nas delicatessens de bairro, receitas, livros de cozinha e livrarias pitorescas, vinhos e licores, cafés tomados em um balcão de bar. 


Os Moleskines e assemelhados, como o primeiro Fabriano, são fiéis narradores do meu jeito de sentir o desconhecido, e encontro, no correr das páginas, este eu-viajante tão presente nos percursos que marcam minhas viagens.

Você registra suas experiências viajeiras? à mão, no Smartphone, na câmera fotográfica?
Como você grava suas memórias?

Compartilhe relatos e experiências, é sempre valioso conhecer outras narrativas e olhares.

Abraços,
Betina